quarta-feira, 23 de maio de 2012

outra rosa

Não sei se é demais sentir saudade de não especular sobre greves, temer a protelação da vida, não se preocupar em amarrar os cadarços ou sequer ter uma calça bem passada pra vestir. Saudade de ver os parentes com frequência, saudade de não vê-los tanto assim, tradições natalinas, pascoais, carnavalescas, e quando tudo era mais uma foto no meu álbum, olhar quase triste e sentir saudades. Implicâncias da irmã mais nova, do pai e da mãe, saudade de desarrumar as frutas do fruteiro e reorganizar sentindo que aquilo tudo era uma habilidade insuperável, subir no banco da cozinha pra fazer vitamina de banana e mil outras frutas descombinantes de manhã bem cedo, errar o cesto de lixo e praguejar as cascas que morreram de queda. Saudade de dormir quando sentia sono e acordar quando o corpo já não queria mais dormir, sonhar... sonhar em preto e branco e saudade ainda de imaginar quando acordava quais seriam as cores que eu não enxergava, o perfume forte e doce de minha avó, a bengala de meu avô que insistia em acidentalmente me acertar a cabeça enquanto assistíamos televisão, tanta saudade de meu avô e sua navalha que limpava-lhe o rosto sereno em frente ao espelho enferrujado, esticando-se pela falta de altura, saudade do chão de ladrilhos.
Saudade do chão de ladrilhos
E da parede de ladrilhos também
da Porta de filmes de Cowboy, do barulho de carros na rua, das luzes que invadiam a janela à noite, buzinas bem longe, o silêncio aqui dentro.
E quando tudo é saudade demais de se sentir
deixar ser saudade demais pra se aguentar
sentir que aguento demais pra ser saudade
ainda sentir falta dos ladrilhos, meu avô, pai, mãe, irmã, avó, bananas, cozinha, sono, travesseiro, quarto pouco iluminado, porta retrato quadrado, e do redondo também, da namorada que eu ainda não tinha, dos filhos que a vida trará, de escolher nomes pros bichos, da manga rosa que caia do pé e eu chupava sem pensar que amanhã seria outra manga, outra manga, outra rosa.

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Intangível

​Exú corre no rio E atravessa o tempo Não tem pegada ou encruzilhada Exú corre no rio Tempo avesso e através.